segunda-feira, 20 de outubro de 2008

alexandre mate - sobre homem cavalo & sociedade anônima


Em qual limite de fronteira pode ser encontrado o HOMEM CAVALO em condição de SOCIEDADE ANÔNIMA? Qual a saída desses Pégasos aprisionados pelos pés?

Não há dúvida, se se tomar a experiência da Cia. Estável, formada na primeira década de 2000, da importância de que se reveste a Lei de Fomento na cidade de São Paulo. Desde seu projeto inicial: Amigos da Multidão, desenvolvido no Teatro Flávio Império – em Cangaíba, na Zona Leste da cidade –, o Grupo, formado originalmente por estudantes, de curso de formação de atores da Fundação das Artes de São Caetano do Sul, depura seus espetáculos e amplia as problemáticas em torno das quais os temas são escolhidos. O primeiro espetáculo montado pela Cia., com dramaturgia de Reinaldo Maia, foi Flávio Império – Uma celebração da vida. Posteriormente, Quem casa quer casa de Martins Pena e Auto do circo de Luís Alberto de Abreu, com direção de Renata Zhaneta.

Fundamentado na necessidade de desenvolver um processo de interlocução com a comunidade, no entorno do teatro, os jovens atores da Cia. Estável (penso que, em seu início, todos estavam na faixa dos vinte anos) desenvolveram um significativo conjunto de ações com crianças, adolescentes e adultos. Desse modo, ao mesmo tempo em que os integrantes da Cia. estudavam e treinavam, os achados e conquistas decorrentes desse mergulho estético, comunitário e político eram partilhados com os moradores daquele pequeno, mas populoso rincão da ZL. Atualmente, mesmo distante daquela comunidade, são visíveis as marcas daquela gente toda impregnando as preocupações, os corpos, os interesses, os modos de fazer e as ressignificações estético-sociais de um trabalho que parece buscar um espectro de interlocução que transcende o exclusivamente estético.

Os integrantes da Cia., por intermédio de gestão com o Arsenal da Esperança (instituição ligada ao Serviço Missionário Jovem: www.arsenaldaesperança.org.br), desenvolveram processo de pesquisa com as histórias, sonhos e apreensões dos recolhidos da instituição, por um significativo processo de tempo, e que resultou no Homem cavalo & sociedade anônima: título em cuja formulação se abrigam as mais diversas e significativas metáforas dos desterritorializados.

O espetáculo rigorosamente épico: na escolha e modo de exposição do tema (fábula fragmentada e repleta de solos narrativos), nos expedientes a partir dos quais o espetáculo vai se desenhando no tempo e no espaço e no local de apresentação (Arsenal da Esperança), repleto de homens recolhidos. É impossível assistir ao espetáculo e não perceber os protagonistas daqueles fragmentos na cena e fora, mas tão perto, dela. Normalmente circunspectos, alguns desses homens – cujas próprias histórias lhes são (re)apresentadas – comentam, tentam interferir, mas sem saber talvez que, a despeito de tudo, e parafraseando o poeta maior, no poema Infância, que suas histórias, em processo de revisitação, podem ser mais bonitas que aquela de Robinson Crusoé.

Trata-se de um espetáculo de acertos! O primeiro deles concerne à escolha da dramaturgização das histórias dos homens desterritorializados e em passagem pelo Arsenal da Esperança. Fragmentos apresentados por meio de relatos gravados de alguns desses homens, em solos e em diálogos apresentados pelos atores, nas letras do surpreendente trabalho musical sob direção de Osvaldo Hortencio, pela narrativa representada pelo trabalho de visualidade de Luís Rossi. Entretanto, apesar do acerto da escolha e da apresentação da dramaturgia, é nela, também, que se encontra o maior problema. O espetáculo termina depois da primeira aparição física do Sr. Doutor Patrão (que marca presença durante toda a encenação representado por seu chapéu), apresentado deliciosamente por Maria Carolina Dressler. Como a composição da personagem por Maria é paródica (grande e acertadamente influenciada em uma das lições de Bertolt Brecht) e, também, distante dos maniqueístas chavões do patrão perverso versus o trabalhador oprimido, apresentá-lo ao final não esvazia a crítica de algo como: Olha contra o que você está lutando! Ao contrário, por sua presença sempre simbólica, alegorizando uma ideologia perversa, penso que ao destacá-lo no final, barganhando com Osmundo algumas poucas laranjas, o Grupo confere-lhe papel de protagonista nas disputas com a classe trabalhadora, mas, e sem qualquer idealismo, apresenta-o tomando o ponto de vista crítico dos desterritorializados.

Osmundo (excelente composição de Osvaldo Pinheiro), antes mesmo de o espetáculo começar indaga aos espectadores se alguém pode emprestar-lhe um RG para ele entrar no Arsenal: sem documento ou aquilo que lhe confere identidade mo mundo, ele fica fora! Ao se entrar no arsenal, o prólogo apresenta um painel com logomarcas de infinitos produtos, suspensa acima do painel, uma personagem – espécie de mãe-mercadoria, que fala por intermédio de slogans publicitários – parece anunciar o homem patrocinado: o brasileiro como mais um produto, o homem reificado (coisificação), o homem mercadoria. Então, se ainda podem ser vistos nos centros das grandes cidades os chamados homens-sanduiche, a obra apresenta uma mulher-logomarcada, coriféia do homem-mercadoria. O primeiro homem-mercadoria, em feliz apreensão metafórica de si mesmo – e em embate com seus iguais, antes de ser expulso de seu lugar, que é higienizado pelos agentes da Prefeitura –, afirma: “Gente pobre nasce do sexo, a rica das idéias.”

Em terceiro e último deslocamento, o público, na condição de ocupante do albergue: também um abrigado, ocupa as plataformas dispostas em arena. Vindo das caixas acústicas um abrigado fala da vida, daquilo que lhe foi dado viver. A carroça, puxada pelo homem cavalo ganha a cena (espécie de carroça-palco ou pageant dos artistas populares da Idade Média). O homem cavalo, formando um enorme cortejo de uma sociedade de homens anônimos, desfilará por aquele espaço de troca, cuja indicação no chão de linóleo apresenta a confluência de duas ruas: uma encruzilhada de duas imensas avenidas chamadas Brasil. A carnavalização grotesca canta e insiste: “Quem põe preço em seu suor?” Desse imenso vazio repleto de tantos seres, um pai, delicada, mas contundentemente apresentado por Nei Gomes tenta dialogar, usando o orelhão com filho que já o esqueceu e sua mulher que se casou novamente. A tentativa de sorte em São Paulo, trabalhando como gari, empurrou-o definitivamente ao esquecimento... Na seqüência monologismos de classe média invadem a cena: os filhos da classe média querem fazer chapinha no cabelo, saber claramente o que significa traje esporte chique, um gerente debate-se por ter conseguido cortar apenas 39% dos empregados quando sua missão era cortar 45%, um jovem fumando maconha que quer salvar os pandas do planeta. No geral, o absurdo do relato na caixa de som, os monologismos da classe média, o não saber muito bem de si mesmo caracteriza-se por um coro cuja fala é tartamudeante. Repete-se várias vezes a mesma coisa. Repete-se, por intermédio de textos diversos, a mesma fala orquestrando timbres de uma mesma ideologia de excludência. As letras da música sem tartamudear comentam a gagueira repetitiva.

À essa altura, o espetáculo, naquele espaço, repleto de alusões aos homens cavalos, e estes (nós todos), formando uma coisificada sociedade anônima, passamos a nos olhar na platéia também. Muitos homens de falsas havaianas nos pés. Corpos com a cabeça enterrada e as costas marcadas por um peso agora invisível, mas contundente na vida social, indicam mais facilmente as protagonistas da cena. Quando a Mulher do latão, belissimamente apresentada por Daniela Giampetro apresenta seu solo, muitos na platéia, que conhecem a cena, fazem-se presentes banhados por grande alegria. Um dos recolhidos, no dia em que assisti (domingo, 05 de outubro), anuncia alegremente: “O banho da Maloca”. Cena grotesca de infinda beleza. Cena dialética e de desmascaramento, a Mulher do latão, depois de receber o segundo telefonema do orelhão recebe a notícia do noivo que não vem. Tira o véu e o buquê e deposita-os, com cuidado na sacola da Daslu. Afirma que os homens não prestam mesmo; xinga os homens da platéia, com certo acento caipira, chamando-os de corno e recolhe-se novamente ao seu “mundo interior”: um velho latão que um dia abrigou um produto químico qualquer.



Os “Ed” apresentam-se na próxima cena. Na condição de garis, são incitados, por bizarras técnicas de “otimismo e de otimização”, à produção feliz. Coordenados por um empregado com carteira assinada, os outros quatro garis trabalham “ter-terceirizados”, recebendo um salário mais miserável ainda, do registrado. O empregado divide em quatro o seu trabalho, mas não o seu salário. A perversão da lógica do capital é demonstrada por estratagema de um trabalhador contra o outro, com sofisticado requinte de crueldade. Apesar de haver certo formalismo na seqüência que daí decorre, Maria Carolina e Sandra Santanna, muito bem em cena, apresentam duas personagens cuja consciência se anuncia, mas de modo fragmentado. Embriagado, um dos quatro Eds, maravilhosamente construído por Osvaldo Hortencio, reclama a uma voz do outro lado da linha, em orelhão público, por não ter sido chamado pela agência de contratação de mão de obra. Na próxima intervenção musical há dois versos próximos a: “Eu compasso ferrado no casco/ Sou barulho de uma multidão.” O rumor da multidão, o prenuncio de uma percepção coletiva, recuando no tempo, explica como o Perninha conseguiu um celular. Na primeira cena, Perninha aparece com o celular, agora, nesse flash-back, sabe-se que ele ganhou mesmo por ter feito um favor a um bandido.

Os (des)territorializados despem-se de suas roupas básicas, aquela mesma que os homogeiniza, mas que lhes imprime e lhes confere uma identidade grupal, classista: ainda não em si, ainda não para si. Despidos desses trajes, na condição de espólio de uma vida de suor, Osmundo, na condição de poeta de rua, libera a encruzilhada dessas identidades, que ele nomeia carniça. Osmundo oferece pérolas aos povos!

Andressa Ferrarezi, jovem – entretanto, firme – diretora, orquestra e organiza excelente e sensivelmente os materiais cênicos e humanos do espetáculo. Na obra, percebe-se os toques sensíveis de uma diretora, cuja generosidade permitiu o parto criativo de cada um dos seis maravilhosos atores. Há uma concepção cênica e imagética que resulta do trabalho de cada sujeito em partilha com a direção. Mérito de Andressa e de Luciano Carvalho, bravo escudeiro na dramaturgia, também na assistência à direção e, penso, na provocação das consciências.

Trabalho coletivo com participações distintas dentre as quais é preciso destacar, ainda, a concepção de luz de Erike Busoni: eficiente e repleta de lirismos (sobretudo pelos balões flutuante e tingidos de azul, e os múltiplos acertos na orientação de dramaturgia de Cássio Pires.

Trata-se de um emocionante espetáculo. Difícil lembrar-se dele sem que a emoção conciliada entre o humano e o estético se presentifiquem turvando os olhos: que se açucaram. É isso: com a Estável se tem teatro. Excelente teatro. Teatro que não repete apenas as lições dos mestres, mas, ao tomá-los como parceiros e referências, ultrapassa-os trazendo-os para mais longe, no sentido de entendê-los melhor.

Alexandre Mate. Outubro/novembro de 2008.
Obs. – a leitura crítica aqui apresentada compreende duas idas ao espetáculo e a participação em um debate com a parceira Iná Camargo Costa.

2 comentários:

Anônimo disse...

A Cia. Estável merece todas as críticas positivas. Graças a vocês, pude entender o que é teatro! Fazem muita falta no Flávio Império. Beijos!

Ju Marinello disse...

Crítica deliciosa! Não tem como assistir sem sentir tesão... A Estável provoca essas coisas mesmo. Amo! Beijos.