quarta-feira, 8 de outubro de 2008

entrevista















Na íntegra, entrevista concedida por e-mail à Gabriela Mellão (colaboradora da Folha de SP e da Revista Bravo!), por Andressa Ferrarezi e Osvaldo Hortencio - respectivamente diretora e ator e diretor musical do espetáculo Homem cavalo & Sociedade Anônima. As respostas foram dadas separadamente e optamos por publicá-las sem edição.

GABRIELA MELLÃO - Porque vocês decidiram fazer este espetáculo inteiramente em processo colaborativo, sem as habituais participações externas de dramaturgo e diretor? Isso foi resultado de uma evolução natural da Cia. ou o quê?

ANDRESSA FERRAREZI - A Cia. já vinha de um processo colaborativo (O Auto do Circo), mas com artistas convidados (Renata Zhaneta, Luís Alberto de Abreu, Marcelo Milan, Reinaldo Sanches), o processo foi muito bom, mas tínhamos a sensação que terceirizávamos aquilo que podíamos fazer. A direção já havia sido experienciada antes por um dos integrantes, o Nei Gomes, mas a dramaturgia e a direção musical não. Então no primeiro processo do projeto Vagar resolvemos nos capacitar para assumir tais funções e aliamos a interpretação e criação, aulas de direção, musicalização - o Dinho (Osvaldo Hortencio)já tinha uma base musical - e dramaturgia. Não chamo de evolução natural, mas de um processo de maturidade.


OSVALDO HORTENCIO - Nosso ultimo espetáculo, O Auto do Circo, já era um processo colaborativo, porém com outras especificidades. A mais determinante talvez seja justamente esta, de contar com pessoas que, apesar de conhecerem e compreenderem a nossa pesquisa, não tinham uma vivência efetiva do projeto. Isso foi uma dificuldade em vários momentos. A decisão partiu justamente disso, do fato de querermos mais autonomia dos meios de produção. Inclusive para que pudéssemos verticalizar nossa pesquisa de criação em absoluta intervenção com o espaço em que estamos inseridos. Essa é evolução da Cia., que tem buscado reestruturar suas relações de trabalho para que isso interfira na continuidade da pesquisa e criação de nossos trabalhos.
É importante ressaltar que, apesar de termos assumido certas funções neste trabalho, ainda contamos com a ajuda técnica de algumas pessoas que serviam como medida para nos mantermos na linha... Como o Cássio Pires na dramaturgia e do Bakhy na música. Eles tinham a função de manter o nosso olhar atento às questões técnicas especificas nessas áreas.

GM - É a primeira vez que a Cia. transforma a realidade encontrada em um projeto social desenvolvido por vocês em tema de um espetáculo? Como foi o processo de criação no abrigo?

AF - Chegando ao Arsenal da Esperança observamos que a nossa proposta inicial do projeto Vagar não é preciso, que era aliar a pesquisa dentro da casa com estudos sobre nomadismo circense, não era suficiente diante de tudo o que víamos e vivíamos com os acolhidos. A miséria com a qual nos deparamos abriu o buraco sob nossos pés "calçados", a exploração do trabalho fez com que mudássemos, inclusive, as estruturas da própria Cia. O processo de criação foi diferente de tudo o que já havíamos feito antes, a participação e a interferência dos acolhidos foi fundamental para que algumas "fichas" caíssem e que os rumos da pesquisa mudassem de direção.

OH - São mil cento e cinqüenta homens, rostos que mudam sempre. Isso foi muito rico, pois nos forneceu muito material para reflexão. A administração do espaço é muito generosa conosco e nos possibilita bastante liberdade.
Quanto às questões práticas, tivemos experiências diversas. Desde soltar personagens para interagir pelo espaço com os acolhidos, até criar cenas em conjunto com eles, passando por fóruns, debates, e ensaios onde os acolhidos interferiam diretamente nos rumos da criação. Além, é claro, das oficinas. A partir desta experiência, nos recolhíamos em sala pra discutir os conteúdos e tocar a criação adiante.
Alguns de nós até buscaram outras aproximações com a casa, trabalhando como voluntários na portaria ou simplesmente chegando mais cedo para sentar-se na praça e jogar conversa fora com os acolhidos.
Passamos um longo período tentando entender o que é o Arsenal. Nos iludimos várias vezes, caímos em preconceitos e simplificações perigosas, até encararmos a questão de frente. E esta escapa à realidade do Arsenal e invade as ruas, a vida.

GM - Sentiram uma mudança no processo ou no resultado do projeto? Que benefícios esta mudança trouxe ao espetáculo?

AF - A Cia. Estável assumiu que o teatro que faz é político e que não existe teatro que não o seja. O importante foi definir de que lado estamos e para quem e com quem fazemos teatro.

OH - Drásticas. Tivemos que reavaliar opções estéticas que nos acompanhavam nos espetáculos anteriores, a fim de abarcar o conteúdo com o qual estávamos lidando. Isso está impresso no resultado do projeto e no espetáculo, e é justamente o maior benefício: elaborar uma criação teatral afinada com o nosso discurso; fazer uma pesquisa teatral não limitada ao gabinete, teórica por demais e fria, mas viva e em contato com o que é imediato nos nossos dias.



GM - O que mudou no espetáculo em relação à linguagem e estética desenvolvida pela Cia. em seus últimos trabalhos?

AF - Sempre buscamos um teatro com uma linguagem de fácil acesso pairando sobre o popular, o épico e tendo o circo como pano de fundo. Acho que esses elementos estão presentes no espetáculo. A única mudança foi a opção de fragmentar a trama. O tema escolhido não cabia em um roteiro linear, cronologicamente progressivo, porque tratamos das chagas sociais de um longo período histórico que se apresentam hoje. Para tanto, cenas independentes propiciaram a apresentação de um universo social mais amplo.

OH - Há uma diferença de foco. Antes mais ligada à técnica e agora mais ao discurso, ao que se quer dizer. Isso, inclusive, é fruto desta forma de trabalho, onde não há um dramaturgo que te traz a coisa sintetizada. Você é o responsável por dar corpo a determinada questão. Você é o responsável por achar a opção mais adequada às questões técnicas para potencializar a cena. O circo, por exemplo, não é algo tão presente neste trabalho. No entanto, o popular continua sendo uma busca.

GM - Como foi a realidade que vocês encontraram lá, em comparação à encontrada no teatro Flávio Império e como ela influenciou o espetáculo?

AF - Diferente do Flávio Império, no Arsenal percebo que a arte não dá conta de tanta miséria. Lá dentro muitas vezes atrapalhamos os acolhidos que dormem cedo, ouvimos críticas sobre nosso trabalho. Fomos vistos como um grupo de pequenos burgueses querendo fazer "artezinha". Isso tudo fez com que a Cia. Estável atingisse um grau de maturidade e percebesse a importância de estudar aquela realidade mais a fundo, ou melhor, estudar o processo histórico que faz necessário que casas de acolhida existam. Isso influenciou diretamente o espetáculo que, a priori, seria uma peça que falaria sobre nomadismo circense e trecheiros e acabou por retratar uma necessidade do "vagar" não pela aventura, mas pelas faltas.


OH - O projeto Amigos da Multidão aconteceu em parceria com uma população de maioria jovem, que buscava naquele espaço – o teatro Flávio Império – um território de troca artística e reflexão desta arte em relação com a sociedade. Foi uma interferência mútua e muito próxima, cotidianamente.
No Arsenal, as relações são mais frágeis, pois se trata de homens adultos, em geral endurecidos por uma série de faltas – casa, família, trabalho -, e que estão sempre de passagem. O que dificulta uma aproximação mais estreita. No entanto, no Arsenal as experiências destes homens são mais fortes, além de mais numerosas e diversas de nossa realidade. São homens de todos os cantos do Brasil e, também, do mundo.
Quando chegamos, guiados pela metáfora do vagar, descobrimos que teríamos que reavaliar qualquer conceito do que poderia ser um acolhido do Arsenal, porque são muitos e diferentes e mudando o tempo todo. Diferentes inclusive no motivo que os levava a estar como acolhido naquele espaço. Nossa busca, nosso vagar, tornou-se encontrar a razão comum que nos colocava todos com o pé na estrada. O resultado desta busca é o espetáculo, que pretendemos e entendemos como além do Arsenal, nas ruas que andamos, nas casas em que vivemos, nos trabalhos que fazemos, nas relações que construímos.


GM - De atriz do grupo você, Andressa, passou a diretora. Como se deu este processo? É sua estréia na direção?

AF - No ano passado todos experimentamos a direção de cenas, um trabalho feito primeiramente sob coordenação de Georgette Fadel. Depois, cada integrante dirigiu a Cia. durante um mês e ao término desse processo dividimos as funções. Como no começo do ano dirigi um espetáculo juvenil - Rua Florada, sem saída - com a Casa da tia Siré e gostei da experiência, resolvi me candidatar à direção e isso foi acatado pelo coletivo.

OH - Tivemos um longo período de experimentações multifuncionais. Praticamente todos passamos por todas as funções. Em um determinado momento, todos nós nos colocamos ao dispor para algumas delas e tivemos uma conversa bastante franca. Menos pautada nas capacidades e mais nas necessidades do grupo e do espetáculo que estava para nascer.
A Andressa assumir a direção foi um processo muito natural dentro do que nos propúnhamos, assim como outros integrantes assumirem outras funções. Mais do que isso, era necessário. Além disso, ela não deixa de ser atriz dentro deste coletivo. Mas optou por, neste trabalho, ficar apenas como diretora.

GM - Como fazer de um trabalho social uma peça de teatro, privilegiando o resultado artístico?

AF - A Cia. é um grupo de teatro que joga um olhar sensível para a realidade, portanto tudo é matéria prima para a poesia. Somos seres sociais e narramos a história humana.

OH - É uma encruzilhada. Até porque somos ensinados a separar política de estética. Daí temos que correr atrás deste atraso antes de qualquer coisa...
Mas uma medida importante é não separar pesquisa teatral da vida. É ter consciência que somos trabalhadores, cujo ofício é a arte, e não seres privilegiados que elegem um tema para dar sua opinião em cena.
Então o resultado artístico deve ser coerente com o que você vive, percebe, entende do mundo. E se você está realmente disposto a aprofundar a discussão, vai ter que sair do umbigo.


GM - A peça faz uma dura crítica à sociedade, dividindo-a entre ricos alienados e pobres que se deixam explorar. A intenção foi mesmo chacoalhar?

AF - Fizemos intensos estudos sobre história, economia e formação da sociedade e não podemos negar que essa sociedade está dividida em classes e que a exploração da classe trabalhadora existe. E vale ressaltar que os ricos no espetáculo não são apresentados como alienados, o que está em cena é uma classe média que está alheia a toda uma movimentação do entorno. O que podemos chamar de ricos figura na narrativa como o Sr. Doutor Patrão, que não é alienado e sabe o que quer e como quer. Já os pobres não se deixam explorar, eles apenas não têm opção, vendem sua força de trabalho.

OH - No caso deste espetáculo, estudamos, vivemos e criamos para validar nossa opinião: a exploração existe e move muito mais coisas no mundo do que pensamos. E trata-se, sim, de uma dinâmica de classes.

GM - As histórias da peça foram inspiradas na realidade de vocês no abrigo? Conte histórias ouvidas ou testemunhadas que marcaram e foram parar na ficção.

AF - O comum é ouvirmos histórias de homens que não conseguem emprego pelo simples fato de serem albergados ou quando este fato é descoberto pelos patrões eles são dispensados. Além do "salário de fome" (grifo dos moradores) a que são submetidos. Estas e outras questões estão presentes nas cenas de forma genérica, pois são tantos os fatos que nos permitiu uma regra geral.

OH - Nada foi diretamente da realidade para ficção, mas tudo foi material para provocação. E muitas coisas vieram de outras experiências, inclusive de membros do nosso coletivo, relacionadas à exploração.
Mas tem coisas que ficaram muito marcadas para nós, como o processo de higienização do centro, do qual foram vítimas alguns acolhidos do Arsenal, tendo seus pertences molhados ou até recolhidos por agentes da prefeitura. Ou relações de trabalho onde o acolhido não podia revelar onde morava para não perder o emprego, mesmo sendo um trabalho miserável e explorado. Tem também o orelhão da casa, onde já ouvimos várias histórias de famílias separadas, de desespero por emprego ...
No nosso blog tem alguma coisa a respeito disso ...


GM - De que forma se deu a troca entre vocês artistas e os moradores do abrigo. A realidade deles inspirou o espetáculo e vocês, de que forma alteraram a realidade deles? Como os moradores do abrigo reagem à metáfora do homem-animal?

AF - Não alteramos a realidade de 1200 homens e não pretendemos alterar, pois o problema vai além dos portões do Arsenal. Alguns conseguem sair de lá com emprego, alugar um quartinho, mas não são todos. A realidade de moradores de rua ou da classe trabalhadora, que ultrapassa esses portões, está presente nas cenas. Conseguimos levantar esse material através de debates, observações e criações junto com os acolhidos, vale à pena ressaltar que a rotatividade da casa é grande, mas as questões são sempre muito parecidas.
Os homens do Arsenal se identificam com a exploração do Homem Cavalo, há uma concordância indignada. A indignação não vem do fato de serem comparados a um animal, mas sim, da situação retratada, do cotidiano estampado e do mecanismo de exploração desvendado.

OH - Nem sei se é possível eleger algumas formas de troca... ela se deu em tantos e tão diferentes níveis. Às vezes o fato de passarmos com um instrumento musical na frente deles e sermos solicitados para tocar ou ouvir uma música deles é uma troca que age nas nossas rotinas, nos inspira e interfere na criação do espetáculo. Tem as oficinas, onde este espaço é propositalmente criado, mas também os ensaios e intervenções pela Casa...
Às vezes uma frase ouvida, ou alguma história contada. Mas, em geral, essas experiências se validam quando fogem do pitoresco e encontramos uma relação maior com fatos macro sociais.
Nossa expectativa de mudança na realidade deles é a que esperamos em qualquer outro espetáculo para qualquer público: provocar a reflexão. E, a partir daí, agir para transformar. Aceitar a exploração, a animalização do homem, é algo muito mais comum do que pensamos. Nos exploramos, ou incentivamos a exploração o tempo todo. Quem são os empregados que fazem sua vida andar, todo dia? Eles são tratados com dignidade no que se refere às condições básicas de sobrevivência? Alimentação, vestimenta, moradia... Não só os acolhidos se reconhecem como homens-animais como nós também, e os alunos das oficinas, diversos amigos nossos trabalhando em telemarketing ou no comércio, ou mesmo no teatro.
É claro que para eles, os acolhidos, a questão é mais intensa. Os que são chamados de “excluídos” estão absolutamente incluídos neste sistema, com uma função bem clara: ser uma massa desempregada fazendo pressão nos que têm subemprego.
Eu não acordo às 5h da manhã para carregar caminhão em Guarulhos a R$20 a diária, sem o dinheiro da condução. Mas eles sim. E se eles reclamarem ou não quiserem vai ter um monte de gente que vai querer...

GM - Qual a função da música neste espetáculo e de que forma sua criação foi influenciada pela realidade?



OH - A música deste espetáculo foi criada paralelamente à sua dramaturgia. Sua função está ligada a procedimentos épicos de evidenciar as discussões no espetáculo, quer seja pela contradição ou pela via didática.
Tantos os aspectos de linguagem quanto suas letras surgiram de um longo processo de treinamento aliado às discussões sobre o conteúdo da peça. Algumas foram criadas para certas cenas, outras geraram cenas. Mas, como todo o resto neste processo, partiu de constatações da realidade, do Arsenal e da vida.

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