terça-feira, 1 de julho de 2008

o que está virando

Uns trechos de coisas produzidas por nós que estão nos colocando em movimento neste novo espetáculo.



O HOMEM CAVALO

Quando lhe colocaram as rédeas o novo trabalhador sentiu-se humilhado e lembrou de que não era animal. Seu rosto corou e o sorriso tímido que aquele homem forçava demonstrar sumiu por completo. No mesmo instante, notando o constrangimento, o senhor doutor-patrão tratou logo de explicar que as cordas não o aprisionavam, elas serviam apenas para que ele pudesse ser guiado. É fácil perde-se entre tantos caminhos, disse o senhor-doutor-patrão com a sabedoria dos que nascem para pensar.

E foi assim que deu-se o primeiro contato entre o velho patrão e este novo empregado. Jovem forte, persistente, se não lhe faltassem dois dentes da frente seria perfeito. Ele tinha um silêncio programado de trabalhador, cujo pensamento teme atravessar a boca. Isso agradava por demais o doutor porque ele gostava de falar, teorizar durante as longas viagens: gente pobre nasce do sexo, gente rica das idéias.





PAI
(num orelhão)

Faz tempo, né? Você está com quantos anos? Sabe com quantos eu estou? Esqueci de um monte de coisas, mas me lembro que...

Você já é pai, filho?

Nunca mais vi ninguém. A gente não andou pelos mesmos buracos...

Nossa, nem sei falar de mim, eu estou tão diferente! Andar me fez assim. Perdi o jeito. Fica difícil ter gente por perto.

Eu escolhi sair. Mas não escolhi ficar assim como estou.

Você se parece comigo... Mesmo que não queira.

O que você tem na sua vida? Trabalho? Estudo? Família? Dinheiro? Tecnologia?

O que você faz? Ainda tá lá em Itatiba? (PAUSA) Desculpa. Eu fico falando, desculpa... Não sei nada de você... Tá trabalhando

Na lavoura? É, teimoso, cabeça-dura.

Mulher ajuda, mas às vezes atrapalha...

Eu faço o que tenho que fazer, todo dia. Só.

Antes tinha bastante trabalho nas fábricas, agora não tem; antes tinha muito café, agora acabou a riqueza... Cana e soja só dá dinheiro pros fazendeiros que já quase não dão emprego porque tem muita máquina ... E quando tem uns bicos, terminam não pagando tudo ou o que é de direito, esses patrões. Entende?

Não é fácil...

Não te culpo por não me entender. Eu mesmo não entendo.

Eu já estou andando há tanto tempo que nem lembro porque saí de casa.

Sua mãe é que estava certa!

A gente vai perdendo espaço, sabe?É no campo, no trabalho, na família, nas ruas e nas praças. Parece que tão varrendo a gente, trocando a gente por coisa melhor! Cadê as coisas melhores? Você sabe? Você nem me conhece. Nem eu a você. Eu hoje sei que tenho que comer quando tenho fome, dormir quando tenho sono, e me proteger do cotidiano. Só. Às vezes é melhor só andar, mesmo.

Você e seus irmãos sempre estiveram na minha cabeça. Carrego vocês comigo. Mas não espero que você faça o mesmo.

Não carrego muita coisa, não. Tem coisas que lembro todo dia, na minha cabeça.

Você tem alguma foto de antigamente?

Não carrego muita coisa, não. Tem as ferramentas... Mas eu escolhi não carregar outras coisas. Você tem o direito de fazer o mesmo. O que eu tenho está na minha cabeça. Só.

Eu nem reconheceria sua mãe se a encontrasse hoje. Nem dá mais pra voltar atrás... eu nem queria.

Já me acostumei a pedir, sei fazer isso. Mas não te peço nada, não. E se você parece mesmo comigo, tanto quanto eu quero, você ainda vai querer entender pra que que serve ter as cosias... ou as coisas te terem.

Um comentário:

Algumas coisinhas da Jéssica disse...

"Pra que serve ter as coisas ou as coisas te terem".

Forte, isso!!! Dá até uma dor no coração. Uma tristeza de entender algo que é de difícil solução...

É, parece que o projeto vai ser forte, hein?

Quando tiver cenas pra ver, avisem!

Merda!