domingo, 4 de maio de 2014

Casa Limpa

“É que nem na peça de vocês, né? Se eu não aceitar, alguém aceita.”

Fala do Gilson, motorista que nos acompanhou nas atividades do projeto no Mato Grosso do Sul, ao revelar que ganhava apenas 60 reais pela diária do seu serviço, terceirizado. 

E assim foi nossa viagem, permeada por contradições. Começou sendo custeada por dinheiro público, através do prêmio Myriam Muniz, da Fundação Nacional de Artes. As apresentações, aprovadas portanto pelo órgão responsável, foram em mais de uma ocasião interceptadas e nosso uso do espaço público, questionado. 

Ao nos deslocarmos para Dourados, primeira parada para apresentações, já sentimos o peso da cidade em que mais se mata indígenas no país. Quilômetros e quilômetros infindáveis de plantação de milho e de soja pelo caminho. As marcas da gigantesca Indústria dos Transgênicos e Agrotóxicos S.A. (Cargill, Monsanto...) estampadas por todos os lados, até mesmo, vejam só, em iniciativas culturais. 

De repente, o comerciante que pede escolta policial na cena ganha uma outra camada naquele lugar em que a lei se faz pela bala. Lei de poucos e para poucos, afinal, quem precisa de justiça “tem que ser rico, ser dono e ter tempo pra esbanjar”.

Logo na primeira apresentação, no Parque dos Ipês, surgem as figuras policiais para fiscalizar a atividade, a princípio bastante incomodados com a nossa presença ali. Pouco tempo depois resolvem contribuir com a encenação dando um enquadro no morador de rua que atrapalhava a reunião pacífica dos espectadores de bem. 

A escolta policial pedida em cena apareceu novamente em Campo Grande, quando nos preparávamos para fazer uma apresentação na feira noturna de Cabreúva. Já no espaço, auxiliados pelos incríveis parceiros e parceiras do Teatro Imaginário Maracangalha (que fizeram inclusive tarefas que seriam de responsabilidade da prefeitura, como a limpeza e manutenção do lugar), somos surpreendidos por um conflito que se inicia bem ao nosso lado. 

Acontece que o prefeito da cidade fora cassado e em seu lugar assumiu um pastor evangélico, um dos fundadores da Igreja Assembléia de Deus Nova Aliança. Desde então, os cultos evangélicos tem ganhado força na cidade e eis que ali na feira se encontravam duas mulheres que reclamavam o uso do nosso espaço de apresentação para realizar mais um deles. Prontamente, foi explicado que a atividade teatral já havia sido marcada com o órgão responsável e que naquele dia especificamente o culto não se realizaria. 

A discussão, entretanto, já havia nesse momento engrossado e a presença dos guardas municipais sido reforçada. É nesse instante que os artesãos que vendiam seus produtos ali ao lado da feira aderem à conversa, já que, aproveitando o ensejo, os guardas haviam acabado de pedir que se retirassem dali, pois não possuíam alvará. 

Novamente, o espaço público é negado aos trabalhadores. Novamente, atitudes arbitrárias são tomadas em prol dos interesses de poucos. Até que a medição de forças indicou que os guardas armados ali ao lado não estavam sendo suficientes para oprimir todos os artistas/artesãos/trabalhadores e passantes que se ajuntaram no momento, com muitos argumentos e número ainda maior de câmeras nas mãos.

Foi sem sombra de dúvidas um evento exemplar do que acontece todos os dias por esse mundão afora, quando somos enxotados do espaço público. De volta a São Paulo, logo nos deparamos com a difícil conjuntura. Mais um decreto limitando o uso do espaço da rua sendo enfiado goela abaixo dos trabalhadores. Afetando coletivos de teatro, músicos, estatuístas, artesãos, não apenas impedindo-os de trabalharem, mas ferindo o direito de todos de fazer do espaço público um espaço de troca e de reflexão. O que resta é que por esse espaço circulem apenas mercadorias, gente espremida pelo deslocamento diário casa-trabalho e os gringos que virão para a Copa do Mundo. 

O decreto nº 54.948 que regulamenta a lei 15.776, um dos tantos que já existem e que estão ainda por vir, devia ser chamado de Decreto Casa Limpa. Estamos sendo varridos pra escanteio. E acima queimando o sol.

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