terça-feira, 15 de junho de 2010

do trabalho da cia. estável - francine machado

Postado no blog DIÁRIO CÊNICO no dia 07/JUN.

Precisou ver Homem Cavalo & Sociedade Anônima inteira para compreender que realmente estava a uma distância muito curta dos abrigados no Arsenal da Esperança: como previu o professor da oficina no ano passado – bastava que caísse uma das pernas de sustentação de sua vidinha confortável, fosse pais, amigos, irmãos, namorado, primos, tios… Ao seu lado, na faculdade, estudava com uma amiga que já tinha ficado viúva, entrado em depressão, sido despejada, morado na rua e chegado à conclusão que as coisas mais importantes do mundo eram “onde comeria, dormiria e tomaria banho naquela noite”.
Lembrou do amigo que não podia ouvir falar em trabalho voluntário com moradores de rua, pois sua família não tinha conseguido tirar o tio debaixo dos viadutos – de uma certa forma há uma liberdade viciante lá, sem horários para comer, dormir, tomar banho, ao contrário dos albergues. Teve pena quando leu e ouviu o preconceito que sofrem por morar lá e perdem empregos por conta dele: será possível que não tenham um endereço de amigo para mentir a moradia? Conheceu uma moça de Ribeirão Pires, que dava endereço de colega, por sempre ouvir que morava longe e até perder o trabalho por conta disso.
Ficou impressionada com os trabalhadores de máscaras de cavalo e as músicas alertando para desigualdades sociais. De alguma sorte, aquele era o teatro que queria fazer, meio marxista, meio de rua, meio circense. Se reconheceu nos trabalhadores braçais, mesmo sendo teoricamente menos explorada por fazer um trabalho “das ideias”, como diziam os proletários que conhecia. Também não tinha muita voz e vez com a precarização das relações de trabalho, pois não há vagas para todos os competentes do mercado e sente que temos escolha – por ter saído sempre que se sentiu estuprada intelectualmente e não ter – por ter precisado encontrar outra prostituição corporativa antes de levantar vôo.
Recapitulou e entre os tios, só uma fez faculdade. Hoje parece que Deus e o mundo estuda, mas mesmo assim, parece que 6% da população brasileira tem nível superior – a maioria não deve terminar. Mesmo com curso já concluído, vê cada vez mais no mercado profissionais de faculdade desconhecidas que antes não tinham voz nem vez, nas últimas empresas pelas quais passou, ganhando menos que o piso – como ela. Teria relação entre as duas coisas? Se sentiu tão vilipendiada quando o avô, que gerações atrás trabalhava por um pedaço de chão, por comida e recentemente foi considerado pioneiro no norte do Paraná, Lembrou do quanto ele era fã do Getúlio Vargas, o pai dos trabalhadores, tentou imaginar como seria antes e desconfia que retrocedemos.
Continua sem entender como o pai foi sindicalista e hoje quer que abra mão do ar que respira no teatro para se dedicar à prisão trabalhística que se tornou o mercado como um todo, mas ensaia se por no lugar dele depois de ler Rasga Coração, de Oduvaldo Viana, indicada pelo mesmo professora da oficina de resignificação do Artista da Fome/Kafka, realizada no 2º semestre de 2007, na qual pai e filho também não se entendem, embora o primeiro tenha sido meio revolucionário e o segundo também se revele “um rebelde com causa”.
Não vê calos em suas mãos como os conhecidos que fazem trabalhos braçais, mas teve o sono tão invadido pelo que cobram no campo de concentração pós moderno onde dá seu suor e lágrimas que hoje para ressonar em paz toma remédios e descobre maravilhada que só “não gostava de dormir” por ter passado quase uma vida cochilando. Tem vontade de fazer carpintaria, costurar, enfim, por a mão na massa tanto, cansar a ponto de desmaiar na cama sem auxílio nem dos naturebas. É como se quisesse dividir as descobertas com o mundo, mas sente que são tão singulares, únicas e subjetivas as fichas que caem que pratica o nobre silêncio budista, processando e deixando decantar tudo que o espetáculo e o reencontro com amigos cênicos provocou.

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