Cia. Estável
completa 12 anos de teatro e coletivismo radical
Amadurecido por mais de uma década de luta, grupo trabalha com outros
coletivos artísticos para debate e luta por políticas públicas, além de
somar-se às diversas lutas do teatro de grupo paulista
02/07/2013
Eduardo Campos Limade São Paulo (SP)
A Companhia Estável de Teatro completa, em 2013, 12 anos de pesquisa
sobre formas políticas de teatro e de buscas por um trabalho radicalmente
coletivo, procurando espelhar na organização interna do grupo a crítica
contra-hegemônica formulada em cena.
O coletivo tem suas origens na turma que se formou em 1997 na escola de
teatro da Fundação das Artes de São Caetano do Sul. Após um período vinculado à
instituição, o grupo tornou-se autônomo e, em 2001, inscreveu-se no programa de
ocupação de teatros distritais da prefeitura de São Paulo, sendo selecionado
para se instalar no teatro Flávio Império, em Cangaíba.
Na fase inicial, a Cia. Estável fazia uma investigação da commedia
dell’arte – forma teatral que se criou em feiras e mercados da Itália,
baseada em personagens tipificados e roteiro simplificado (que pode variar a
cada apresentação) e guarda parentesco com o teatro de rua e o circo. A
linguagem cômica popular, marcante na peça Os Menestréis, consolidou-se
como perspectiva de trabalho do grupo, sendo fundamental nas encenações
seguintes, A Incrível Viagem, Flávio Império, Uma Celebração da Vida e Quem
Casa Quer Casa.
O trabalho no teatro Flávio Império incluía oficinas de formação para
adultos e crianças. Esse contato contínuo com a comunidade garantiu que o
público voltasse a frequentar o espaço. “Quando começamos a ocupar o Flávio
Império, era preciso convencer as pessoas da região a assistir, mesmo com
apresentações gratuitas. Conseguimos reverter a situação muito rapidamente, com
o trabalho continuado no entorno”, recorda a atriz Daniela Giampietro.
Os artistas precisaram usar parte dos recursos obtidos com o projeto
para sanar os diversos problemas com a estrutura do teatro. “Não havia
manutenção. Muitos assentos estavam quebrados e, quando chovia, partes do
telhado caíam na plateia”, lembra a atriz Andressa Ferrarezi.
Em 2002, o grupo foi contemplado na primeira edição do Programa
Municipal de Fomento ao Teatro. Em julho de 2004, estreia a peça O Auto do
Circo, criada a partir da dramaturgia de Luís Alberto de Abreu e dos
estudos da historiadora Ermínia Silva sobre a arte circense no Brasil.
Precariedade e marxismo
O ano de 2005 foi marcado por uma série de dificuldades. A trupe não
conseguiu obter recursos e acabou deixando o espaço que ocupava. Ao longo do
ano, os artistas mantiveram apresentações em outros teatros distritais.
No ano seguinte, o coletivo travou contato com o Arsenal da Esperança,
espaço onde funcionava a Hospedaria dos Imigrantes e que, desde 1996, acolhe
diariamente centenas de pessoas sem moradia. Acabaram se instalando lá, em uma
lona armada dentro da área, o que acarretou profundas transformações em seu
trabalho e em sua organização.
“Inicialmente, tentamos transpor para o Arsenal da Esperança nossa
pesquisa sobre o nomadismo circense. Entretanto, as situações-limite vivida pelas
pessoas que lá são acolhidas exigiu que tivéssemos um outro olhar”, explica
Giampietro. Procurando aprofundar estudos que dessem conta da realidade
encontrada no novo espaço – e também das contradições mais amplas da vida sob o
capitalismo –, a companhia se aproximou do educador social Luís Scapi e do
marxismo. “Isso mudou bastante a cara do grupo. Passamos a nos organizar da
forma mais horizontal possível, procurando não mais reproduzir a divisão social
do trabalho que estávamos criticando em cena”, afirma Giampietro.
Sem uma figura de diretor a centralizar a companhia, foi estabelecida
uma estrutura radicalmente igualitária, em que todos pertencem ao núcleo
artístico e também desempenham tarefas técnicas – que deixaram de ser
terceirizadas, como é comum –, compartilhando igualmente os recursos obtidos.
Os trabalhos passaram a ser divididos em núcleos – de direção, de dramaturgia
ou de música, por exemplo –, podendo cada um deles ser coordenado por um
parceiro de fora do grupo, convidado para um projeto específico.
Essas transformações tiveram como contrapartida cênica a peça Homem
Cavalo & Sociedade Anônima, construída em conjunto com os moradores do
Arsenal da Esperança e a partir de suas experiências. “As cenas de improvisação
para criação da dramaturgia eram feitas com os moradores, de modo que eles
interferiam nelas e até as dirigiam. Foi uma potência para nosso trabalho
estético”, conta Andressa Ferrarezi.
A peça estabelece, a partir da fábula sobre um “homem cavalo” que o
título menciona, um panorama da vida degradada pelo capitalismo avançado, em
seus desdobramentos nas esferas do trabalho, moradia e consumo.
O projeto SobrePosições, que veio a seguir, deu continuidade ao trabalho
do grupo no Arsenal da Esperança. “A ideia era tornar mais direta a relação com
os acolhidos pelo Arsenal, de modo a criar um campo de interlocução mais
produtivo”, define Daniela Giampietro. A trupe manteve os estudos sobre
materialismo dialético e a exploração do trabalho, ao mesmo tempo que
aprofundava a pesquisa em teatro épico.
Em 2010, foram ampliadas as oficinas de teatro no Arsenal, com duração
de três meses – mas organizadas de tal modo que pudessem ser aproveitadas por
pessoas que delas participassem durante um único dia; tal formato foi
desenvolvido para dar conta da alta rotatividade de acolhidos.
Teatro e política
A busca por formas teatrais que pudessem materializar as contradições da
realidade social levou o coletivo à peça A Exceção e a Regra, do
teatrólogo alemão Bertolt Brecht. O texto esmiúça as relações entre empregado e
padrão, este último envolvido em uma disputa pela concessão de uma área de
exploração de petróleo, e o amparo que a opressão do trabalho encontra na
esfera jurídica. “A partir do texto, fizemos um exercício com os acolhidos que
gerou um debate profícuo”, lembra Giampietro.
O grupo decidiu encenar a peça, dividindo-se em dois núcleos, cada um
com um diretor. A exigente dinâmica de trabalho gerou uma crise – e a saída de
três integrantes. Em 2012, o coletivo se reorganizou, com a entrada de quatro
novos membros. “O teatro de grupo é marcado pela precariedade. Todas essas
dificuldades de sobrevivência dos grupos advêm desse quadro”, aponta Ferrarezi.
Permaneceu o trabalho com A Exceção e a Regra, embora muito
transformado pelos influxos dos novos artistas. Ao mesmo tempo, nasceu o
projeto Desterro – Poéticas Vermelhas, cuja dimensão política volta-se à
questão da gentrificação na cidade de São Paulo – processo de especulação imobiliária
por meio do qual áreas do território urbano tradicionalmente ocupadas por
trabalhadores passam a ter preços mais altos, o que resulta na expulsão dos
moradores tradicionais para regiões mais afastadas. “Em nosso dia a dia no
Arsenal, percebemos os efeitos desse processo, já que convivemos com suas
vítimas”, conta Giampietro.
Para lidar com o tema da gentrificação, o grupo procurou trabalhar com
as doze formas do teatro de agitação e propaganda (agitprop) desenvolvidas no
período da Revolução Russa (1917) e na Alemanha dos anos 1920 – gêneros como o
jornal vivo, que se baseia na encenação de notícias, e o cabaré vermelho, que
adapta a antiga forma de teatro musicado para tratar de assuntos
revolucionários. A cada uma das formas corresponde uma cena, dirigida por um
coordenador convidado.
O trabalho nasceu de um intercâmbio entre a Estável e grupos parceiros,
que se uniram, no ano passado, para estudar as formas de agitprop e fazer
exercícios com elas, partindo do tema das “Diretas Já”. “Temos uma relação
permanente com diversos grupos de teatro contra-hegemônico, com os quais nos
articulamos para lutas coletivas e desenvolvemos projetos paralelos”, explica
Daniela Giampietro.
Há cerca de três anos, a Cia. Estável integra o Movimento de Teatro de
Rua (MTR), instância de organização dos coletivos artísticos para debate e luta
por políticas públicas, além de somar-se às diversas lutas do teatro de grupo
paulista. “Desde que encenamos Homem Cavalo, também estreitamos os laços com o
MST e movimentos de moradia”, conta Giampietro. O grupo, além disso, é pioneiro
nas apresentações artísticas na fábrica ocupada Flaskô. Assim a Cia. Estável
vai aprofundando sua perspectiva de trabalho crítico e coletivo – e ampliando
para outros grupos seu horizonte de transformação social. (Saiba mais em: territorioestavel.blogspot.com)
Trecho final da peça Homem Cavalo & Sociedade Anônima
Junto com centenas de cavalos selvagens, o jovem homem livre galopava
por campos verdes sentindo a brisa fria da aurora.
Nunca soube ser livre. Escolher caminhos era coisa nova. Mas, teve a
sensação de ser muitos e a confiança de estar certo.
Em campo aberto, em mata virgem, em riacho limpo molhou o focinho, junto
com os outros e chorava de alegria e prazer a cada galope.
Um grito humano, e não de cavalo, cortou os corações da tropa que
avistou a primeira cerca de arame farpado.
Correram pra longe dali, queriam campos livres. Queriam campos livres e
encontraram uma placa: proibido passar! Meia volta, e trotaram até um pedágio
numa rodovia.
Fugiram desesperados, num galope forte cheio de suor e músculos.
Correram e só pararam com o choque diante da enorme porteira de ferro. O homem
cavalo percebeu que os campos livres estavam depois da cerca. Afastou-se e deu
um coice na porteira como um soco de mãos grossas no rosto cínico do senhor
doutor patrão. A porteira caiu, ensanguentada. Ergueu-se junto de outros sobre
duas patas. Entendia mais das coisas. Não havia pra onde correr.
Ele não era um animal.
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